76 anos de Nakba

A Nakba não terminou em 1948. Continua até hoje, com Israel a expandir os seus colonatos e a anexar mais terras palestinas, em violação do direito internacional. Nas décadas seguintes, assistimos ao crescimento da força e do domínio deste novo “Estado”, que se tornou uma superpotência regional. Atualmente, Israel é uma potência nuclear com um exército classificado como o quinto maior do mundo. Goza do apoio incondicional dos países ocidentais, em particular dos Estados Unidos.

5/15/20247 min read

A criação de Israel, oficialmente declarada em 15 de maio de 1948, marcou o início da “catástrofe” (‘Nakba’), o longo exílio, com a expulsão do povo palestiniano a ser celebrada pela instalação de outro povo no seu lugar. Chegamos assim a mais um ano de comemorações da criação deste estado, baseado num regime de apartheid, sem que se vislumbre, mais uma vez, um fim para o conflito. A apropriação de terras, a limpeza étnica, e as violações dos direitos humanos, perpetradas por Israel contra os palestinianos, continuam a ser incessantes, impunes e imputáveis.

Este ano assinala-se o 76º aniversário desde que Israel foi estabelecido como Estado, sobre as ruínas da Palestina. Para que esta nova “pátria judia” fosse demograficamente sustentável, ou seja, para que se garantisse que a maioria da população fosse efectivamente judia, nos meses anteriores à declaração de independência, em 1948, as milícias e forças militares sionistas iniciaram uma limpeza étnica de grande parte das cidades, vilas e aldeias palestinianas, conduzindo à expulsão de mais de 80% desta população. Foram então implementadas leis que, por um lado, negaram aos palestinianos o direito a reentrarem no seu território e, por outro, expropriaram as terras e casas daqueles mesmos palestinianos. Tornaram-se uma comunidade de refugiados permanente, que conta atualmente com cerca de seis milhões de pessoas, a maioria dos quais vive em campos de refugiados urbanos semelhantes a bairros de lata, maioritariamente no Líbano, na Síria, na Jordânia e na Cisjordânia (ocupada por Israel). Na Faixa de Gaza, os refugiados e os seus descendentes constituem cerca de três quartos da população. A guerra de 1948 deixou a sociedade palestiniana sem líderes, desorganizada e dispersa. Este acontecimento não foi um resultado inevitável do conflito entre judeus e árabes na Palestina. Pelo contrário, foi uma política deliberada de limpeza étnica levada a cabo pelas milícias sionistas, encorajada pelas autoridades coloniais britânicas que procuravam manter o seu controlo sobre a região.

A Nakba está na cerne da luta palestiniana, mas, em muitos aspectos, empalidece em comparação com a guerra de Israel em Gaza. Nos últimos 6 meses vimo-nos testemunhas de uma escalada brutal na história da ocupação do território palestiniano num verdadeiro genocídio promovido pelo Estado de Israel. Um massacre onde pelo menos 35.000 palestinianos e palestinianas foram assassinados, incluindo mais de 15.000 crianças e 2 milhões de pessoas foram presas em Gaza. Estão ainda por recuperar os corpos de cerca de 7.000 pessoas soterrados debaixo dos escombros das suas casas e oficinas, e soma-se a cada dia a descoberta de cada vez mais valas comuns de corpos, muitos deles com sinais de totura. Cerca de 1,7 milhões de palestinianos - aproximadamente três quartos da população do território - já tiveram que evacuar e fugir das suas casas, muitas vezes várias vezes. Este número é muito superior ao dobro do número de pessoas que fugiram antes e durante a guerra de 1948. As imagens dos palestinianos a deslocar-se a pé para campos de tendas já sobrelotados, à medida que Israel expande a sua ofensiva, tem vindo a repetir, e em tudo assemelham-se às fotografias a preto e branco de 1948. Na Cisjordânia, já 492 palestinianos perderam a vida devido a ataques de soldados israelitas e colonos judeus desde 7 de outubro.

A Nakba continua até hoje, e em força. Como a natureza do Estado israelita não se satisfaz com as fronteiras que lhe foram inicialmente atribuídas, a sua expansão, com a expulsão e expropriação de palestinianos, mantém se, com a constante anexação de território, em violação do direito internacional. Várias décadas após a descolonização oficial de África pelos Estados europeus, em pleno século XXI, Israel promove a colonização de terras retiradas aos palestinianos por indivíduos de cidadania israelita. No final de 2022, o número de postos de controlo militar e de colonatos israelitas na Cisjordânia tinha atingido 483, com a população de colonos a atingir 745467, principalmente em Jerusalém. Em 2023, observou-se um aumento significativo na construção de colonatos, com as autoridades israelitas a aprovarem planos para mais de 18000 unidades, incluindo em Jerusalém. Foram apreendidas pelas autoridades israelitas 26000 acres de terras palestinianas na Cisjordânia em 2022, um número que aumentou para 50526 acres em 2023, e ainda demoliu parcial ou totalmente 659 edifícios e instalações. Também em 2023, colonos judeus e forças israelitas levaram a cabo 12161 ataques contra palestinianos e as suas propriedades, incluindo 3808 contra propriedades e locais religiosos, 707 contra terras e recursos naturais e 7646 contra indivíduos. Os ataques resultaram em danos em cerca de 21700 árvores, incluindo 18 964 oliveiras.

Nas décadas seguintes, assistimos ao crescimento da força e do domínio deste novo “Estado”, que se tornou uma superpotência regional. Atualmente, Israel é uma potência nuclear com um exército classificado como o quinto maior do mundo. Goza do apoio incondicional dos países ocidentais, em particuar dos Estados Unidos.

Quanto às vítimas da criação de Israel, os palestinos, forçados a perder quase tudo, não mereceram qualquer honra ou louvor, nem lhes foi atribuído qualquer estatuto. Desde 1948, à medida que Israel foi ganhando poder e prestígio, os palestinianos têm lutado até ao fim para preservar o que resta da sua presença na terra, da sua história e da sua memória coletiva contra uma formidável campanha israelita para os apagar.

Não é de surpreender. Israel tem seguido um programa de política anti-palestina desde 1948, de forma descarada ou dissimulada. Como descrever de outra forma a expulsão da maior parte da população palestiniana em 1948, repetida em 1967 e continuada desde então, a ocupação militar da Cisjordânia, de Gaza e de Jerusalém Oriental, a construção de colonatos, o cerco desumano de Gaza, e o regime de apartheid imposto aos palestinianos? De acordo com dados da Sociedade Palestiniana de Prisioneiros e da Comissão de Assuntos de Detidos e Ex-Detidos da Autoridade Palestiniana, cerca de um milhão de pessoas foram detidas desde 1967. Só na Cisjordânia, o número de detenções atingiu 8 520 desde 7 de outubro, tendo alguns sido libertados e outros permanecido sob custódia. Desde 7 de outubro de 2023, Israel destruiu ou danificou gravemente um total de 89.000 edifícios em Gaza, incluindo 104 pertencentes à ONU. O custo da guerra em Gaza, incluindo os danos em infra-estruturas, estradas, eletricidade, redes de água e terrenos agrícolas, está estimado em 30 mil milhões de dólares.

Há já muito que a atuação de Israel deveria ter suscitado a repulsa da comunidade internacional e uma firme rejeição do sionismo. Mas, até hoje, nada disso aconteceu. Para os aliados ocidentais de Israel, tudo continua como sempre, com um Estado que viola regularmente o direito internacional, ataca os seus vizinhos, oprime os palestinianos, cujas terras ocupa, e lhes impõe um sistema de apartheid. E, por isso, o Ocidente abraçou Israel como uma parte estimada do seu rebanho.

O 76.º aniversário da Nakba ocorre numa conjuntura crítica e perigosa, já que se tem assistido a uma escalada implacável das intervenções violentas israelitas contra os palestinianos nos territórios ocupados e em Gaza, muito antes do 7 de outubro, contrário que Israel e os seus aliados ocidentais tentem transmitir. Em 2021, com a ‘intifada (revolta) da unidade’, 313 palestinianos, incluindo 71 menores, foram mortos na Faixa de Gaza e na Cisjordânia (incluindo Jerusalém Oriental) pelas forças de segurança israelitas. Até esta última escalada por parte de Israel, 2022 tinha sido o ano mais mortal para os palestinianos na Cisjordânia desde 2005, com o que tinha sido um recorde de 204 palestinianos mortos em 2022.

Até agora, Israel tem conseguido levar a cabo esta injustiça devido à permissividade do Ocidente em relação aos crimes israelitas e à existência da Autoridade Palestiniana, que absolve Israel da responsabilidade pelos palestinianos ocupados. Os Estados Unidos fornecem a Israel armamento avançado, partilha de informações e apoio político e diplomático. Ainda hoje, Joe Biden, presidente dos EUA, avança com um novo pacote de apoio militar, com a venda de armas e munições no valor de mil milhões de dólares. O Ocidente considera-o como uma parte integrante do mundo ‘ocidental’, proclamando-o até como sendo um bastião de valores ocidentais de liberdade e democracia, a ‘única democracia no medio-oriente’, tal como existia na África do Sul há 40 anos. A União Europeia concedeu a Israel um estatuto privilegiado no comércio e no acesso aos programas de investigação da UE, como se fosse um Estado europeu. A própria presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, esmera-se constantemente em elogios a Israel, tendo dito ainda no ano passado, nos 75 anos da criação do Estado, Israel tinha “feito florescer o deserto”, apagando assim a própria existência do povo palestiniano nas suas terras, e baseado em tropos racistas.

A Nakba não é apenas um acontecimento histórico, mas um processo contínuo de desapropriação, colonização e limpeza étnica. Os palestinianos continuam a ser vítimas de discriminação e violência por parte das forças israelitas e dos colonos, bem como da falta de direitos humanos básicos, como a liberdade de circulação e o acesso à água e a outros recursos. A comunidade internacional, em especial as potências ocidentais, como os Estados Unidos, não quis responsabilizar Israel pelas suas violações dos direitos dos palestinianos, dando, em vez disso, apoio diplomático e militar às suas ações, e os resultados desse tapar dos olhos estão agora bem claros.

A Nakba não foi um acidente, mas um ato deliberado de injustiça. Não existe solução justa e democrática para este “conflito”, sem ter em conta o direito ao regresso dos palestinianos expulsos, assim como os seus descendentes, ou o fim do apartheid legal que vigora e vai sendo reforçado, actualmente, no Estado de Israel e territórios por ele ocupados. Não existe solução justa e democrática que inclua um estado racista e colonialista que serve de posto avançado do imperialismo no Médio Oriente.

Aqui no ocidente, são os trabalhadores e estudantes que se têm de mobilizar para exigir o corte de relações com o estado de Israel. Nos últimos meses temos visto manifestações, acampadas estudantis, greves, boicotes, todas elas formas de lutar por uma Palestina multiétnica, laica, democrática e inclusiva.