O que faltou ao 25 de Abril para ser Outubro?

De Petrogrado a Lisboa: encontros e desencontros de duas revoluções.

NACIONAL

4/22/20247 min read

A revolução dos cravos, que floresceu no dia 25 de Abril de 1974, em Lisboa, tinha começado a germinar bem longe de Portugal, em Angola, 13 anos antes, com o início da luta de guerrilhas do povo africano pela sua independência, contra o imperialismo português. O prolongamento da guerra, com o número elevado de mortos e feridos, as condições dos combatentes e o agravar das condições de vida em todo continente levaram a uma situação cada vez mais insustentável. Dentro das forças armadas, esse sentimento perturba o normal funcionamento do exército e o descontentamento expressa-se na formação do MFA, por oficiais de baixa patente. Com o objetivo de acabar com a guerra, o MFA vê-se obrigado a realizar um golpe militar para retirar Caetano e coloca Spínola à frente do pais. Ao contrário dos desejos dos capitães, que protagonizaram o golpe na madrugada de 24 para 25, as massas saíram à rua e gritaram palavras de ordem contra a PIDE e todo regime ditatorial, exigindo democracia e a punição dos elementos ligados ao velho regime.

Poucos dias depois, a manifestação do 1º de Maio contou com 1 milhão de pessoas nas ruas em Lisboa. Nesse momento, depois de uma ditadura de quase meio século, a classe trabalhadora desperta de um “sono profundo” e parte à conquista de uma nova vida, em um processo no qual a parte mais ativa passa a organizar-se coletivamente. As primeiras contra-ofensivas da burguesia, apavorada, foram duas tentativas de golpes que fracassaram graças à mobilização da classe trabalhadora. A partir do dia 11 de Março, se inicia a segunda tentativa de Spínola para impor um regime autoritário e asfixiar a revolução. Esse movimento intensifica-se e, diante da radicalização, a Europa fica cada vez mais atenta e interventiva no processo.

Se, por um lado, a burguesia mundial temia a radicalidade do processo, por outro, a esquerda revolucionária mundial sonhava que Lisboa se tornasse uma Moscovo ou Havana. A possibilidade de uma revolução do tipo “Outubro russo”, que levasse a classe trabalhadora ao poder, como aconteceu na Rússia em 1917, não era apenas um sonho de lunáticos optimistas. O desfecho que conhecemos do processo revolucionário português, com a consolidação do “regime democrático”, era uma das possibilidades, mas não a única. Quais foram as semelhanças e as diferenças entre a revolução russa e a portuguesa? Que papéis cumpriram os partidos que atuavam na classe trabalhadora?

1) As guerras em que ambos os países estiveram envolvidos foram fulcrais para o eclodir dos processos revolucionários. No caso russo, uma guerra imperialista; no caso português, uma guerra colonial. A explosão do ódio das massas com os regimes autoritários tornou-se impossível de conter. Os mortos e feridos multiplicavam-se, a instabilidade e o descontentamento expressavam-se dentro dos exércitos burgueses, os últimos pilares dos estados burgueses. Ambos os países representavam elos débeis da cadeia imperialista mundial. O velho império portugues, administrado pela mais velha ditadura da Europa, tinha ganhado alguma independência face às restantes potências imperialistas, mas sofria de um atraso económico considerável relativamente a estas. O império estava ameaçado pela guerra do povo africano pela sua independência. Abre-se uma divisão no seio da burguesia Portuguesa, que fica clara no livro “Portugal e o futuro” de Spínola. Dois projectos para solucionar os problemas do regime: o setor mais reacionário defendia insistir na mesma política e continuar com a guerra; enquanto um sector mais renovador defendia negociar a paz e dar mais autonomia às colônias, reestruturando o império de forma neocolonial e concedendo alguma liberdade formal às colónias, mas garantindo a sua exploração às mãos da burguesia portuguesa.

2) Em ambos os processos foi a classe trabalhadora a força motriz da revolução, arrastando atrás de si os sectores intermédios. A resposta da burguesia ao levantamento das massas, em ambos os países, teve também semelhanças importantes. Em ambos os processos, a burguesia tentou esmagar a revolta através de soluções autoritárias. Ou seja, golpes para impor regimes reacionários duros o suficiente para impor a ordem e a disciplina. O Golpe de Kornilov na Rússia, a resposta da burguesia ao levantamento dos trabalhadores russos, repetiu-se, na figura de Spinola, como resposta da burguesia portuguesa ao ascenso do movimento operário no país. O Golpe de Kornilov pretendeu derrubar o governo de frente popular, encabeçado por Kerensky, para restaurar um regime autoritário. Em Portugal, o 28 de de Setembro e o 11 de Março foram as tentativas da burguesia de derrubar pela força o governo de frente-popular e impor um regime autoritário. Em Setembro, Spínola apela à mobilização da “maioria silenciosa” para o dia 28 desse mesmo mês. Então, a pronta e massiva mobilização da classe trabalhadora, com a Intersindical à cabeça do processo, derrotou a tentativa de golpe da direita. Foi a segunda derrota da burguesia, depois de ter visto derrotado o projeto presidencialista. A partir do 28 de Setembro, a situação radicaliza-se, a clivagem social intensifica-se com o número de conflitos sociais a aumentar. Iniciam-se as ocupações , começa a nascer o poder popular, mesmo que embrionário e totalmente desorganizado e descentralizado. Em ambos os países as tentativas da burguesia em restaurar a ordem, através de golpes, foram exemplarmente derrotadas através da mobilização da classe trabalhadora. A mobilização operária no dia 11 de Março travou a segunda tentativa de golpe de Spínola que, derrotado, vê-se obrigado a fugir do país, seguido por famílias burguesas importantes de Portugal. As lutas intensificaram-se a partir deste momento e aumentaram o número de comissões de fábrica e moradores por todo país. A grande diferença entre as duas revoluções é que a classe trabalhadora russa, depois de derrotar Kornilov, tinha um partido bolchevique cada vez mais forte para poder continuar a luta e preparar os trabalhadores e suas ferramentas para a tomada do poder.

3) Os partidos de esquerda reformista, hegemónicos na classe trabalhadora de um país e do outro, tiveram, como não poderia deixar de ser, posições idênticas. Na Rússia, eram os mencheviques e os socialistas revolucionários; em Portugal, eram o Partido Socialista e o Partido Comunista Português os principais partidos. Havia, porém, uma diferença significativa: no caso português, os partidos tinham um enraizamento muito menos profundo que no caso russo, e a classe trabalhadora portuguesa não tinha a mesma experiência na luta que a russa. Em ambos os países, os partidos estavam nos governos responsáveis, então, por gerir todo estado burguês. Os governos deste tipo, onde são incluídos os partidos reformistas da classe trabalhadora, são governos atípicos, em que a burguesia é obrigada a socorrer-se nestas organizações quando existe forte ascenso do movimento de massas. Designamos estes governos de frente-popular. São essencialmente de conciliação de classes (burguesia e classe trabalhadora), até possuem um discurso de esquerda, mas aplicam políticas de direita e repimem o movimento de massas. Na Rússia, o governo era capitaneado por Kerensky e composto pelos socialistas revolucionários e mencheviques, representantes da classe operária e camponesa e os Cadetes (representantes da burguesia). Os 6 Governos provisórios em Portugal foram compostos pelos representantes da burguesia (PPD) e pelos representantes da classe trabalhadora (PS e PCP) e o MFA. O MFA, fruto do prestígio que tinha junto da população, jogava o papel de intermediário entre estas duas forças. Estes governos nunca são os favoritos da burguesia, surgem em momentos pré-revolucionários ou revolucionários, quando não é possível derrotar imediatamente a classe trabalhadora. Para isso, em vez de entregar a gestão do Governo aos seus fiéis representantes (os partidos e políticos burgueses), a burguesia é obrigada a ceder, negociar e incluir os representantes da classe trabalhadora na gestão do estado burguês.

4) O surgimento de organismos de luta, onde se discutia e organizava colectivamente o que fazer, foram criando as sementes do poder popular no seio do estado burguês periclitante. Em Portugal, essencialmente depois do 11 de Março, surgiram por todo o país comissões de trabalhadores nas empresas, comissões de moradores nos bairros, comissões de soldados dentro do exército, ocupações de fábricas, herdades e casas devolutas. Mas o poder popular, durante o PREC, não atingiu o mesmo nível de organização da que existiu na Rússia, as inúmeras comissões que se iam formando não se organizavam todas num único organismo, ou seja, num soviete, representante da vontade da globalidade dos conselhos de luta. Isto é, não houve uma centralização e organização do poder popular que se ia desenvolvendo na luta em todo território nacional. Ao contrário do que existia na Rússia, com os sovietes, autoridade reconhecida pelo conjunto da classe trabalhadora em todo o país.

Como vimos, existiram inúmeras semelhanças entre a Revolução Russa e o 25 de Abril, porém houve uma diferença qualitativa, determinante para os desfechos dos processos terem sido distintos: a ausência de um partido revolucionário, enraizado junto à classe trabalhadora, suficientemente forte para conseguir desmascarar as direções traidoras do PS e PCP e com a capacidade de potencializar e coordenar os organismos de poder popular que surgiram no processo revolucionário. Houve 3 condições essenciais para uma vitória revolucionária: 1) crise nas cúpulas do regime; 2) radicalização das classes médias; 3) predisposição da classe trabalhadora para lutar. Porém faltou a ferramenta essencial: um partido revolucionário, com influência de massas, para poder conduzir a classe trabalhadora ao poder. 50 anos depois do 25 de Abril, essa alternativa política revolucionária ainda precisa de ser construída para derrotar a extrema-direita e as política neoliberais dos governos, responsáveis pelo empobrecimento generalizado da nossa classe. É essa a luta do MAS, pela construção de um partido revolucionário, para lutar por um novo 25 de Abril, desta vez com um desfecho diferente: o fim do capitalismo e da exploração.